2005-08-24

Carta a uma filha que desejou nunca ter nascido

Sabes, é verdade que os teus pais não são felizes, mas a culpa não é tua. Dizem-te que se não fosse por ti, que teriam seguido outros rumos. É verdade que se não tivesses nascido, eles já não estariam juntos neste momento, mas acreditas que seriam mais felizes sem ti? Foste, és e serás uma das maiores alegrias dos teus pais. És o tesouro mais precioso que eles têm. Se não tivesses nascido, se calhar, por esta altura, ainda seriam mais infelizes porque completamente sós. Deste-lhes um sentido para esta passagem que é a vida. Não nasceste por acaso. Nasceste porque eles precisavam de ti, nunca te esqueças disso... Um beijinho

2005-08-10

Noite escaldante de Verão

Ela sempre quisera ser ar para poder pairar sobre o mundo, apenas como alma, mas nascera fogo, totalmente dada a paixões. Contudo, não era uma pessoa quente, pois facilmente se enchia de frio. Adorava tardes escaldantes de Verão. Suportava facilmente altas temperaturas e só caía na cama quando o termómetro marcava 40ºC em diante. Podia dizer-se que era como um vulcão. Em geral, estava calma e serena, mas havia um dia em que entrava em ebulição e aí não havia nem ar nem água que lhe valessem. Até então, nenhum homem a havia feito entrar em erupção, menos um, naquela noite escaldante de Verão. Esse tinha um enorme poder erótico sobre ela. Quando ela pensava que ele não lhe causaria qualquer efeito, perdia-se com aquela voz que a fazia fantasiar como nunca. Ouvi-lo falar de tudo e de nada, ouvi-lo ler textos seus e poesias era o melhor afrodisíaco para a sugestionar e a querer tornar-se apenas corpo. Aquele homem fazia despertar o seu lado Lara Croft e estava disposta a fazer loucuras só para poder desatear a chama do desejo. Encontraram-se já tarde, porque ambos eram tecidos de noite. Tentaram falar mas o ar estava simplesmente tórrido, irrespirável. Os pensamentos queimavam-se antes de se transformarem em palavras. Agarram-se repentinamente. Despiram-se depressa entre beijos sôfregos e sorrisos nervosos. O desejo tornara-se tão imperioso que quase era doloroso. Entrou nela como um furacão, pronto a arrebatar a lava dum vulcão. Amaram-se fogosamente, fazendo chiar a cama quase até à exaustão. Agarrados um ao outro, arrebataram-se mutuamente de uma forma brutal e inesperada. E assim permaneceram durante a noite. De manhã, já ele partira, levantou-se da cama para que a água do chuveiro resgatasse as cinzas de si mesma. Sabia que não voltaria a vê-lo...

2005-08-06

silêncio II

O silêncio instalou-se entre nós, os dois, cada um sentado na ponta do sofá. É um silêncio feito tijolo, constructor de paredes. Cada dia que passa vai crescendo um pouco mais e já quase nem consigo ver-te do outro lado, quando espreito por cima do muro. As palavras cansam-se de pular por cima do muro ou de trepar sem apoios. Não nasceram vocacionadas para a escalada. Talvez devêssemos construir um escorrega de frases que pudessem circular de lado a lado. Enviei-te alguns aviões de papel, recheados de palavras. Não os deves ter lido, se calhar aterraram no chão ou simplesmente se esborracharam contra a parede. Remeteste-te ao silêncio. Pensas que é a melhor táctica e a melhor solução assim como um lago estagnado que reflecte céu e terra, mas um lago é feito de várias camadas, algumas de lôdo, e outras de cores escuras onde circulam seres estranhos. Há alturas em que a teimosia em derrubar muros se transforma em obstinação. Atiro pedras ao lago e as águas turvam-se. Se me atiro à água para derrubar o silêncio, afogar-me-ei? O silêncio devolveu-me um avião de papel, devolveu-me as minhas palavras em direcção à janela. Acho que vou ter de reaprender a voar...

2005-08-02

Carta a um amigo narcisista

Amigo, Sei que vais achar que esta carta não é para ti. Dá-me pelo menos o benefício da dúvida e lê-a até ao fim. Hoje em dia, associa-se quase sempre narcisismo a egoísmo, mas não é disso que se trata. Sabias que narcisismo pode ser classificado em dois tipos: o primário e o secundário? O primário é uma etapa normal do desenvolvimento afectivo duma criança, em que se centra em si própria e no seu próprio corpo. O secundário tem a ver com uma transferência da energia libidinal dos objectos do mundo externo para o «eu» e surge quase sempre após um trauma. O narcisismo em doses razoáveis é necessário para o desenvolvimento do «eu» e para preservar a própria identidade, principalmente em situações difíceis. É óptimo para a auto-estima, para se sentir prazer no que se faz e para o próprio amadurecimento pessoal. O problema é quando o narcisismo não é ultrapassado. Fica-se com um sentimento de omnipotência. É-se incapaz de reconhecer os próprios limites e começa-se numa busca desenfreada de qualidades, de direitos, de poder, de posse, querendo atingir metas cada vez mais impossíveis de serem alcançadas. Vivemos num mundo muito competitivo em que já não se valorizam as pequenas coisas e os afectos. Já não há prazer em colher-se malmequeres e andar com eles no cabelo ou no canto da boca. É preciso clonar flores raras de extrema beleza. Já não há gosto nos cozinhados simples da infância. É preciso ir-se aos restaurantes mais caros e conceituados do mundo para se degustar. Já não se vê beleza num olhar meigo ou num corpo que se entrega com desejo. É preciso frequentar-se as topmodels e as pessoas mais carismáticas da vida social. Já não se encontra serenidade apreciando o pôr-do-sol que se vê da janela. É preciso ir para as ilhas mais paradisíacas do Planeta. Estou a generalizar, não quer dizer que estes exemplos se apliquem a ti. Estás habituado a ser muito bom e a que os outros exijam o melhor de ti. Também eu já caí nesse erro de não querer deixar-te falhar e peço desculpa. Sabes, a tentar alcançar novas metas pessoais e conquistar novas pessoas nesse ritmo incessante, vais-te dar conta um dia que estás completamente sozinho, porque andaste a dedicar-te a perder o que era importante e quem realmente te admira e estima. Tu sabes que te admiro imenso. Gosto de ti com as tuas qualidades e os teus defeitos, com as tuas vitórias e os teus fracassos. Não precisas de me provar mais nada. Gosto de ti simplesmente como tu és, comigo não precisas mais de ser narcisista... Um abraço de amorizade jacky PS. Já sei que vais ficar aborrecido comigo, que vais ficar dias e dias sem falar. Não sei se mereço tal castigo. Aceita esta carta como uma prova de carinho e não como um rol de críticas...